sexta-feira, 19 de junho de 2009

Sei que não vou por aí!

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio, in Poemas de Deus e do Diabo

2 comentários:

  1. Gosto muito de José Régio.
    Boa selecção de poema.

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  2. Arrábida Serra de mil sonhos e mil magoas, capaz de nos fazer sorrir de nos fazer chorar.

    O segredo de reconhecer o nosso mundo reside apenas dentro de nós... para onde vamos... como ficamos, a quem nos damos... apenas a nós nos cabe designar, muita pisadela podemos levar... depois de tanta cicatriz... de tanta nodoa negra, chegará a um ponto que não haverá espaço para outras. E nos ergeremos negros e pisados... mas ergeremos...

    Um poema te deixo...

    He Wishes for the Cloths of Heaven by William Butler Yeats

    Had I the heavens' embroidered cloths,
    Enwrought with golden and silver light,
    The blue and the dim and the dark cloths
    Of night and light and the half-light,
    I would spread the cloths under your feet:
    But I, being poor, have only my dreams;
    I have spread my dreams under your feet;
    Tread softly because you tread on my dream.

    PS: desculpa sem em inglês... mas é o orginal

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